O começo (até onde se sabe) da história foi em 1967 quando uma entidade americana representante das indústrias de açúcar, a Sugar Research Fundation - SRF (Fundação de Pesquisa em açúcar – tradução livre), financiou uma revisão publicada no periódico New England Journal of Medicine descartando evidências que mostravam a ligação entre consumo de açúcar e maior probabilidade de adquirir doença coronariana (também conhecida como aterosclerose coronariana). A doença é caracterizada pelo acúmulo de placas de gordura nas artérias e pode levar a um ataque cardíaco. Nessa revisão de 1967, na qual se comparou uma dieta rica em açúcar em uma dieta rica em amido, uma das sugestões foi que a microbiota intestinal pudesse ter um papel nas consequências advindas dessas dietas. Uma das dúvidas era se a microbiota intestinal pudesse interferir no aumento de triglicerídeos no sangue quando o animal era alimentado com uma dieta rica em açúcar. Para responder essa e outras dúvidas e poder controlar os resultados bem de perto, em 1968 a SRF iniciou o financiamento de um projeto chamado Project 259. O objetivo da pesquisa era avaliar os efeitos nutricionais da microbiota do trato intestinal comparando dietas ricas em sacarose e amido. Como modelos animais para o estudo foram escolhidos camundongos germ-free, ou seja, animais que não possuíam bactérias intestinais ou quaisquer outras formas de vida associada (patógenos, fungos, protozoários, etc). Vale ressaltar aqui que na revisão de 1967 do New England Journal of Medicine, uma das conclusões foi que esse modelo de animal tinha pouca utilidade para esse tipo de estudo, o que hoje se sabe não ser verdade. Fica aqui a questão do por que esse modelo foi escolhido já que contrariava os “resultados obtidos” do estudo anterior. Ao pesquisador escolhido para conduzir o estudo foi concedido pouco mais de 29 mil dólares (o que equivaleriam hoje a aproximadamente 187 mil dólares) entre os anos de 1968 e 1970.
Um dos primeiros resultados do Project 259 foi a descoberta da diferença dos níveis de um inibidor de beta glucorinidase entre animais alimentados com a dieta rica em açúcar ou com uma dieta padrão (com cereais e amido). Isso significava que os ratos alimentados com açúcar tinham mais beta glucorinidase. Em 1960, já se sabia que níveis maiores dessa enzima na urina era associado com câncer de bexiga. Hoje se sabe que, além de ser associada ao câncer de bexiga, essa enzima também tem um papel no desenvolvimento da aterosclerose e problemas renais. Esse resultado era muito importante, pois uma lei de 1958 postulava que qualquer alimento que pudesse causar câncer quando ingerido por animais seria retirado da lista de alimentos seguros do FDA. Portanto, se publicados, esses resultados teriam implicações regulatórias para a indústria do açúcar.
Já em agosto de 1970, o pesquisador responsável pelo Project 259 reportou ao SRF resultados preliminares sobre a implicação da microbiota nos níveis de triglicerídeos dos animais com dieta rica em açúcar. Segundo ele, é possível notar um decréscimo significativo de triglicerídeos nos ratos germ-free alimentados com dieta rica em açúcar quando comparado com ratos alimentados com a dieta padrão. Além disso, os ratos que recebiam açúcar ainda mostravam um aumento, não tão expressivo, de colesterol. O próximo passo, segundo o pesquisador, era “contaminar” esses animais com uma microbiota e demonstrar o aumento de triglicerídeos no sangue dos ratos alimentados com a dieta rica em açúcar. Para realizar os experimentos, o cientista informava que precisaria de 18 semanas adicionais. Em setembro do mesmo ano, em uma reunião de executivos da SRF (reunião que mudaria o nome SRF para ISRF – I de International), o vice-presidente da fundação classificou o Project 259 como “sem valor” e declarou que a fundação não mais financiaria o projeto. Caso não tenha ficado claro, foram 15 semanas antes do prazo pedido pelo pesquisador! Em 1974, em um comunicado interno, a ISRF faz uma interpretação dos resultados do Project 259 em que confirma a indicação de que a microbiota intestinal parece ter um papel no aumento de triglicerídeos induzido pela sacarose.
Baseado na análise dos documentos, a ISRF sabia da associação entre o consumo de sacarose e o aumento de triglicerídeos (e posterior risco de doença coronariana), mas também sabia que a divulgação desses resultados ia contra os interesses comerciais da indústria. Além disso, a publicação dos resultados ligando o consumo de açúcar com o risco de câncer na bexiga teriam implicações regulatórias, já que a sacarose poderia ser retirada da lista de alimentos seguros do FDA. Em 2016, a Sugar Association publicou uma nota criticando os resultados publicados no periódico Cancer Research em que foi demonstrado que uma dieta rica em açúcar induz um aumento no crescimento de tumores e risco de metástase quando comparado com dietas com base de amido. Na nota, a associação diz que não há nenhuma ligação plausível entre o consumo de açúcar e o risco de desenvolvimento de câncer.
Ahãm, tá (S)erto!
Referências:
Cristin E. Kearns, Dorie Apollonio, Stanton A. Glantz. Sugar industry sponsorship of germ-free rodent studies linking sucrose to hyperlipidemia and cancer: An historical analysis of internal documents. PLOS Biology, 2017; 15 (11): e2003460 DOI: 10.1371/journal.pbio.2003460.
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